AS SURPRESAS DO VERSO LIVRE – EMMANUEL SANTIAGO

Até o século XIX, imperou, na tradição literária ocidental, o verso composto segundo as normas da versificação tradicional, isto é, metrificado. Contudo ao final de tal século, na esteira das inovações trazidas pelo Simbolismo e pela maneira como este explorava a musicalidade na poesia, o verso livre (sem métrica) foi se afirmando na literatura, até começar a predominar nas primeiras décadas do século XX, no âmbito das vanguardas europeias, como o futurismo e o surrealismo.

Octavio Paz, em O arco e a lira, defende que, originalmente, o verso metrificado estava em consonância com as necessidades da fala. Contudo, com o tempo, as medidas tradicionais foram se cristalizando e deixaram de acompanhar a evolução histórica dos idiomas. O verso livre, então, procuraria reconciliar a poesia com a pulsação natural da linguagem.

Se, no verso metrificado, a regularidade é o principal fator rítmico, no verso livre, as possibilidades são diversas. Fernando Pessoa, por exemplo, num dos poemas de seu heterônimo Alberto Caeiro, obtém um interessante efeito explorando a repetição e permutabilidade das palavras na ordem frásica:

Mas se Deus é as árvores e as flores

E os montes e o luar e o sol,

Para que lhe chamo eu Deus?

Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;

Porque, se ele se fez, para eu o ver,

Sol e luar e flores e árvores e montes,

Se ele me aparece como sendo árvores e montes

E luar e sol e flores,

É que ele quer que eu o conheça

Como árvores e montes e flores e luar e sol.

Manuel Bandeira, em “Poética” — poema no qual defende justamente a liberdade da poesia em relação a padrões previamente estabelecidos —, extrai da variabilidade na extensão dos versos um contraste surpreendente, ao que se soma a justaposição de sintagmas obtida por meio da supressão da pontuação:

De resto não é lirismo

Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.

Enfim, muitas são as possibilidades rítmicas da poesia, seja em verso metrificado, seja no livre. No próximo texto, exploraremos mais algumas delas.