No texto anterior (“Na lata da poesia”), vimos que uma das características da poesia é a exploração da polissemia, o que possibilita que uma única palavra assuma diferentes significados. É isso o que Ezra Pound, em seu ABC da literatura, tinha em mente ao definir a literatura como “linguagem carregada de significado” e a poesia como “a mais condensada forma de expressão verbal”. Para reforçar tal ideia, Pound observa que, em alemão, a palavra Dichtung (“poesia”) deriva do verbo Dichten, que, entre suas acepções primitivas, correspondia ao italiano condensare (“condensar”). Observemos como essa densidade semântica pode ser constatada no primeiro verso da canção “O quereres”, de Caetano Veloso:
Onde queres revólver, sou coqueiro
Ao lermos a oração “sou coqueiro”, percebemos que as palavras, aqui, extrapolam nossa compreensão ordinária das coisas, pois ninguém pode tornar-se um coqueiro; logo, a oração não deve ser lida em sentido denotativo (isto é, literal), mas em sentido conotativo (o que chamamos de “sentido figurado”). O poeta propõe uma relação de identidade entre dois seres que não guardam entre si nenhuma equivalência, estabelecendo que eu = coqueiro; temos, portanto, uma metáfora. Porém, o que isso quer dizer? Para descobri-lo, temos de perceber que o poeta constrói uma oposição entre dois termos: revólver X coqueiro, o que constitui uma antítese — “enquanto você quer X, eu sou Y”. Mas de que maneira revólver e coqueiro se opõem? Tais termos ocupam campos semânticos tão distintos que é difícil enxergar qualquer tipo de relação entre eles. Será preciso, então, compreendê-los para além de seu significado convencional.
Revólver, como arma, remete-nos à violência, que é um dos efeitos de seu uso, estabelecendo, assim, uma relação de identidade entre dois entes que guardam uma relação direta entre si (causa/efeito), chamada metonímia. Por sua vez, coqueiro sugere uma paisagem litorânea, associada habitualmente à ideia de tranquilidade, de maneira que temos duas metonímias: revólver = violência e coqueiro = paz, daí a oposição construída pelo verso — “enquanto você quer brigar, eu quero ficar em paz”. Percebem como os significados se superpõem, pois se eu = coqueiro e coqueiro = paz, logo eu = paz.
Em apenas cinco palavras, encontramos quatro figuras de linguagem: uma metáfora, uma antítese e duas metonímias, entretecidas de maneira tão orgânica que a plena compreensão de cada uma delas depende da compreensão das demais. Um único verso disparou em nós uma série de associações e de operações mentais, fazendo com que as palavras ultrapassassem qualquer significado prévio, anterior ao jogo poético.
Emmanuel Santiago