Na canção “Metáfora”, de Gilberto Gil, encontramos:
Uma lata existe para conter algo,
Mas quando o poeta diz “lata”
Pode estar querendo dizer o incontível.
Na linguagem cotidiana, empregamos as palavras em seu significado convencional, dominado por todos. Dessa maneira, quando dizemos lata, estamos nos referindo a um recipiente cilíndrico, cuja finalidade é armazenar um determinado conteúdo. Entretanto, a mesma palavra, quando dita pelo poeta (isto é, quando empregada na poesia), pode adquirir significados diversos, inclusive um que seja oposto à sua definição convencional, como se verifica na relação lata-continente/lata-incontível estabelecida na canção. Lá pelas tantas, ouvimos:
Por isso não se atreva a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata,
Na lata do poeta tudonada cabe,
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha a caber o incabível.
Exigir que o poeta “determine o conteúdo em sua lata” é a expectativa de que, num poema, as palavras sejam utilizadas de acordo com suas acepções convencionais, dicionarizadas. Contudo, o poeta é livre para criar novas e surpreendentes relações semânticas (relações de significado) entre as palavras. Por exemplo: quando Gilberto Gil se refere a lata nesta estrofe, percebemos que o termo é uma metáfora para palavra — determinar o conteúdo da lata, no caso, é pré-estabelecer um significado para o signo linguístico (logo, neste contexto, lata = palavra).
O verso “na lata do poeta tudonada cabe” aponta dos caminhos. No primeiro, quando consideramos que na lata do poeta tudo cabe, entende-se que não há limites para as possibilidades interpretativas que a linguagem verbal assume no discurso poético, ou seja: um mesmo termo pode adquirir múltiplos significados. É isso o que a linguística e a teoria literária chamam de polissemia. Trata-se de uma característica inerente à linguagem verbal, porém, no dia a dia, procuramos restringir ao máximo sua manifestação, pois pretendemos nos comunicar de forma clara e objetiva, evitando ambiguidades para melhor transmitir uma mensagem. Entretanto, na poesia, procura-se explorar ao máximo as possibilidades semânticas das palavras, fazendo-se um uso inventivo da linguagem, que extrapola os significados cristalizados pela convenção.
Agora, quando se considera que na lata do poeta cabe tudo, inclusive o nada (“tudonada”), Gil enfatiza o estatuto estético da poesia, pois, segundo uma compreensão moderna — com base nas reflexões de Immanuel Kant —, o que caracteriza a arte é o fato de ela não possuir finalidade prática, encontrando no poder de mobilizar a sensibilidade dos indivíduos sua razão de existir. Se, na linguagem prosaica, o propósito é transmitir uma mensagem definida, no discurso poético, tal propósito é acessório ou, no máximo, suplementar. Na poesia, importa sensibilizar o leitor para a beleza ou asperezas da linguagem, daí seu caráter de jogo com as palavras, lúdico. O “nada” que cabe na palavra poética é a ausência de intenção de comunicar um conteúdo semântico unívoco.
Eis, afinal, o que chamamos de licença poética: livre da necessidade de comunicar uma mensagem semanticamente delimitada, o poeta pode brincar com as palavras e seus significados, explorando a polissemia. É isso o que Gilberto Gil expressa e, ao mesmo tempo, realiza na letra de “Metáfora”.
Emmanuel Santiago